sábado, 18 de outubro de 2008

Tisanas


12 Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come (sic!).

72
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento. Depois regressava a casa.

80
Era uma vez uma história tão impressionante que quando alguém a lia o livro começava a transpirar pelas folhas. Se o leitor fosse muito bom o livro soltava mesmo algumas pequeninas gotas redondas de sangue.

235
Acordo de manhã cedo. A maçã da noite corre para a maçã do dia entre os dentes do espaço. Olho a formação das nuvens. O ser humano projecta para fora de si o que é excesso. O tempo faz o resto.

268
Tinha havido uma revolução. No viaduto as letras tinham saído dos livros e lançadas com ardor sobre a cidade a água desaparecera. Não podendo já distinguir entre o rio e a estrada as letras tinham invadido a cidade outra vez e tantas eram que a terra saltava e então compreendeu-se que se tratava de um letramoto e as pessoas apavoradas queriam fugir para o campo mas nas auto-estradas tantas eram as letras que já ninguém conseguia saber para onde iam ou onde mudava a direcção e atropelando-se as pessoas enterravam-se em tinta procurando desesperadamente lembrar-se

307
É uma leoa com cabeça de leão com juba preta. Rara como safira negra, pura e dura. A imaginação é esse delírio: tulipa negra com sapatos de ténis.

349
Quando eu era criança gostava muito e olhar as nuvens. Havia umas redondinhas muito luminosas que se amontoavam por vastas áreas do azul do céu que os meus olhos percorriam encantados. Uma vez perguntei: o que é aquilo? São os anjinhos, responderam-me. E eu acreditei porque era verdade.

Ana Hatherly


4 comentários:

davidsantos disse...

Tisanas? Nunca tinha ouvido falar!

Sim, não são para beber - ou talvez sejam, em pequenos tragos para saborear todas as nuances do seu paladar. São pequenos textos escritos por Ana Hatherly . Não se deixam classificar através das categorias tradicionais. A autora (poeta, romancista, ensaísta e tradutora, para além de ser professora universitária), com uma obra vasta e diversificada, escreve desde 1956, estas infusões líricas em que desconstroi a realidade para a voltar a recriar. À primeira vista não parecem fazer muito sentido, mas depois de digeridos abrem-se numa vastidão de significância.
Aqui ficam uma Tisana

"Os românticos diziam que a morte é o desaparecimento do outro porque na verdade como é que eu posso conhecer o desaparecimento de mim. Penso nisto e olho para o telefone. Penso em ti. O que é que não se tornou um lugar-comum." (Ana Hatherly, Tisana 106)

Anónimo disse...

http://tretaseletras.blogspot.com/2006/10/tisanas.html

esqueceste-te do link...

Anónimo disse...

conheço e adoro!
dá para rir, pensar, estupidificar, chorar...gostava de arranjar o livro.

Anónimo disse...

"Estou no meu quarto. Deitada na minha cama. A luz está acesa. Oiço música. Penso em ti mas não é em ti. É um tu abstracto porque a tua ausência é uma lesão incurável que se imaterializa com o tempo. Por fim adormeço. Quando acordo de manhã sinto-me feliz por ter conseguido dormir."

uma tisana por dia, nem sabe o bem que lhe fazia!