Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 3 de março de 2008
Adeus
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1 comentário:
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado, acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor. Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos contornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o caminho.
Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos. Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite a estranha voz distante, entre ruídos de música e interferências aladas.
Não basta ser feliz.
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.
É preciso cantar, é preciso sorrir,
encher a escuridão com árvores sem nome.
"a invenção do amor e outros poemas" de Daniel Filipe (excerto)
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