sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Retrato de uma Princesa Desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Pque os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minha
Este é o canto do amor em que te falo
Para que escutando sejas minha

Este é o poema - engano do teu rosto
No qual eu busco a abulição da morte

Sophia De Mello Breyner Andresen

domingo, 15 de outubro de 2006

Fazer Amor


Fazer amor requer arte inconsciente.
Fazer amor transcende o feio e o bonito.
Fazer amor requer a alma despida.
Fazer amor transcende a sexualidade.

Fazer amor é ignorar todos os conceitos formais da humanidade
e se entregar como quem se doa a si mesmo!
Fazer amor não tem vínculo algum
com o lado físico dos seres.
Fazer amor é um divindade,
divindade que advém do mais nobre dom da vida : a própria vida.

Fazer amor é enlouquecer a anatomia.
Não importa a forma.
O que importa é não importar com coisa nenhuma.

Fazer amor é fazer de inconcebíveis palavrões um lindo poema.
Fazer amor é fazer do corpo um banquete de sonhos
e fazer da alma o berço do gozo...

José Eustáquio da Silva

quinta-feira, 28 de setembro de 2006




Quero tanto de ti
e tão próximo
que anseio que fosses o ar,
o chão,
as paredes,
tudo.

Que tudo o que tocasse
fossem os teus braços.
Que tudo o que sentisse
fossem os teus lábios.

Como quando fecho os olhos
e tudo o que não vejo és tu.
Como quando não durmo
e tudo o que sonho és tu.

Contigo não consigo respirar.
Sem ti não consigo viver.

Quero estar tão dentro de ti,
que nem a luz do dia exista para mim.
Quero abraçar-te tanto
que todo o mundo colapse
e desapareça num pequeno ponto
entre os meus braços.

Toca-me com as tuas mãos.
Faz-me desaparecer com a tua pele.
Sufoca-me na tua língua.
Arrasta-me pelo ar com o teu perfume.
Mata-me de vez.

TU se fosses chuva,
do céu só cairiam pérolas ...
E até o chão gritaria de prazer.

Maria Teresa Horta
Eu falho tanto.
Rio no pranto.
Choro quando danço.
Quero lá saber do tom do canto.

E ainda assim...

Sei que me queres,
Que fazes sempre
Por vontade
E nunca
Porque achas que deves.

Transformas-te em vento
Para matar a saudade.
Como posso,
Sequer em pensamento,
Pedir-te que não erres!

Sinto-me viva
Quando
Esqueces as horas
Os dias, os anos
Fazes um sorriso
Traquinas.

Dizes coisas
Tontas.
Abres os braços
Para ouvir melhor
A música que gostas.

Esqueces a chuva
E apanhas fruta
Madura, roubada.
Andas
Pela beira da estrada
Com o olhar glorioso
De quem não tem
Mapa nem bússola.

Ris até às lágrimas
Porque te sentes feliz
E
Fazes-me acreditar
Que é por eu estar
Ao teu lado.

domingo, 10 de setembro de 2006

Momento de Poesia


Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante do tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que, cansado, me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que me não diz respeito
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente, não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

Almada Negreiros

Eros e Psique


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino-
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 8 de setembro de 2006


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Cayman Island


Through the alleyways to cool off in the shadows
Then into the street following the water
There's a bearded man paddling in his canoe
Looks as if he has come all the way from the Cayman Islands

These canals, it seems, they all go in circles
Places look the same, and we're the only difference
The wind is in your hair, it's covering my view
I'm holding on to you, on a bike we've hired until tomorrow

If only they could see, if only they had been here
They would understand, how someone could have chosen
To go the length I've gone, to spend just one day riding
Holding on to you, I never thought it would be this clear

Kings of Convenience

sábado, 19 de agosto de 2006

Fogo e Noite


Aconteceu...
Por me teres feito cego
Recordo o sabor da tua pele
E o calor de uma tela
Que pintámos sem pensar.

Ninguém perdeu,
E enquanto o ar foi cego
Despidos de passados
Talvez de lados errados
Conseguiste-me encontrar.

Foi dança
Foram corpos de aço
Entre trastes de guitarras
Que esqueceram amarras
E se amaram sem mostrar.

Foi fogo
Que nos encontrou sozinhos
Queimou a noite em volta
Presos entre chama à solta
Presos feitos para soltar...

Estava escrito
E o mundo só quis virar
A página que um dia se fez pesada

E o suor
Que escorria no ar
No calor dos teus lábios
Inocentes mas sábios...
No segredo do luar.

Não vai acabar
Vamos ser sempre paixão
Vamos ter sempre o olhar
onde não há ninguém
Dei-te mais...! valeu a pena voar...

Estava escrito
E a noite veio acordar
A guerra de sentidos travada num céu
Nem por um segundo largo a mão
Da perfeição do teu desenho
E do teu gesto no meu...
Foi como um sopro estranho......e aconteceu...

És fogo em mim,
És noite em mim.
És fogo em mim.

Toranja

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Quando o amor se agiganta


É tão doce a sensação do amor.
Acordar pela manhã com um beijo
que nos faz voluntários reféns
de um sorriso bailarino.
Ter os olhos incandescentes de auroras
e barrigas-cheias de palavras nos beirais do peito.
Fundir umbigos como quem oferece a alma
e partilhar a floresta dos cheiros e do toque.
Gostar de adormecer e acordar
com as mesmas pestanas à frente
e pensar que vai ser assim... para sempre.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Último Momento

Não digas nada...
Quero dizer-te adeus em silêncio
Amar-te num ultimo momento
Sente-me apenas...
Sem exigências nem dor
Inebria-me com teus suspiros
Num compasso descompassado
De sentidos toques, gemidos
Em loucuras ternas de amor
Vem... não digas nada...

sábado, 12 de agosto de 2006

Quebrámos os Dois


Eu a convencer-te que gostas de mim,
Tu a convenceres-te que não é bem assim.
Eu a mostrar-te o meu lado mais puro,
Tu a argumentares os teus inevitáveis.

Eras tu a dançares em pleno dia,
E eu encostado como quem não vê.
Eras tu a falar para esconder a saudade,
E eu a esconder-me do que não se dizia.


Afinal...
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois...


Desviando os olhos por sentir a verdade,
Juravas a certeza da mentira,
Mas sem queimar de mais,
Sem querer extinguir o que já se sabia.

Eu fugia do toque como do cheiro,
Por saber que era o fim da roupa vestida,
Que inventara no meio do escuro onde estava,
Por ver o desespero na cor que trazias.


Afinal...
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois...


Era eu a despir-te do que era pequeno,
Tu a puxar-me para um lado mais perto,
Onde se contam histórias que nos atam,
Ao silêncio dos lábios que nos mata.

Eras tu a ficar por não saberes partir,
E eu a rezar para que desaparecesses,
Era eu a rezar para que ficasses,
Tu a ficares enquanto saías.

Não nos tocamos enquanto saías,
Não nos tocamos enquanto saímos,
Não nos tocamos e vamos fugindo,
Porque quebramos como crianças.

Afinal...
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois afinal.
Quebrámos os dois...

É quase pecado que se deixa.
Quase pecado que se ignora.

Toranja

Quanto não te doeu acostumares-te a mim,
à minha alma solitária e selvagem, a meu nome que todos
afugentam.
Tantas vezes vimos arder o luzeiro nos beijando os olhos
e sobre nossas cabeças destorcer-se os crepúsculos
em girantes abanos.
Sobre ti minhas palavras chovem carícias.
Desde faz tempo amei teu corpo de nácar ensolarado.
Chego a te crer dona do universo.
Te trarei das montanhas flores alrgres, copihues,
avelãs escuras, e cestas silvestres de beijos.
Quero fazer contigo
o que a Primavera faz com as cerejas.

Pablo Neruda




terça-feira, 25 de julho de 2006

Pintado por Eduardo Naranjo

quarta-feira, 7 de junho de 2006

Declaração

Se uma pessoa diz a outra que a ama, a própria linguagem supõe a expressão "para sempre". Não tem sentido dizer: - Amo-te, mas provavelmente só durará uns meses, ou uns anos, desde que continues a ser simpática e agradável, ou eu não encontre outra melhor, ou não fiques feia com a idade. Um "amo-te" que implica "só por algum tempo" nõo é um amor verdadeiro. É antes um "gosto de ti, agradas-me , sinto-me bem contigo, mas de modo algum estou disposto a entregar-me inteiramente, nem a entregar-te a minha vida". A entrega do corpo é a expressão dessa entrega total da pessoa. Porque o meu corpo sou eu, não é uma coisa externa, um agasalho ou uma máquina que eu uso, mas sou eu próprio. Precisamente por isso, o amor autêntico inclui, por si, o "até que a morte nos separe". O amor é entregar-se para sempre; entregar o corpo sem se entregar para sempre seria prostituição, a utilização da própria intimidade como objecto de troca: dar o corpo em troca de algo (ainda que esse algo seja o enamoramento), sem ter entregado a vida. Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te. Amar não é mais que morrer em si para renascer no outro. Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo? O amor, no seu conjunto, não se reduz à emoção nem ao sentimento, que não são senão alguns dos seus componentes. Um elemento mais profundo, e de longe o mais essencial de todos, é a vontade, que tem o papel de modelar o amor no homem. Na amizade - ao contrário do que sucede na simpatia - a participação da vontade é decisiva. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montanhas, se não tivesse amor, não seria nada. E, ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse amor, nada me aproveitaria. Quando eu digo que amo é porque amo mesmo! E se nos meus interesses tu não apareces é decerto porque aquilo faz parte da farsa que represento todos os dias para os outros, a vida e uma peça de teatro sem direito a ensaios, o que não implica que tu não estejas dia a dia, hora a hora minuto a minuto, presente em mim e em cada gesto, em cada olhar meu...

António Sengo

sexta-feira, 26 de maio de 2006

Conselhos de um velho apaixonado

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem de água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Algo do céu te mandou um presente divino: O AMOR.
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e, em troca, receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um para o outro.
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas Lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida.
Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...
Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...
Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela...
Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais. Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR!!!

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Só nós sabemos


Aposto que tivemos as conversas de sempre, os risos sempre iguais aos de sempre. Aposto que me empurraste uma ou duas vezes com as mãos, como sempre fazias quando querias que me chegasse a ti. Lembro-me do abraço que demos, daqueles que damos sempre, apertados, fundos, nossos, sempre só nossos. Sei que me pegaste na mão como se afinal sempre a tivesses segurado. Sei que senti o que sinto sempre, aquilo que sempre vou sentir, para sempre.É bom ter-te de volta, às vezes, como se fosse para sempre.Só nós sabemos o sempre que temos…

sexta-feira, 19 de maio de 2006

In a Manner of Speaking


In a Manner of speaking
I just want to say
That I could never forget the way
You told me everything
By saying nothing

In a Manner of speaking
I don't understand
How love in silence becomes reprimand
But the way that i feel about you
Is beyond words

Give me the words
Give me the words
That tell me nothing
Give me the words
Give me the words
That tell me everything

In a Manner of speaking
Semantics won't do
In this life that we live we only make do
And the way that we feel
Might have to be sacrified

So in a Manner of speaking
I just want to say
That just like you
I should find a way
To tell you everything
By saying nothing.

Give me the words
Give me the words
That tell me nothing
Give me the words
Give me the words
That tell me everything



N.V.

sábado, 29 de abril de 2006

With or without you


See the stone set in your eyes
See the thorn twist in your side
I wait for you

Sleight of hand and twist of fate
On a bed of nails she makes me wait
And I wait without you

With or without you
With or without you

Through the storm we reach the shore
You give it all but I want more
And I'm waiting for you

With or without you
With or without you
I can't live
With or without you

And you give yourself away
And you give yourself away

My hands are tied
My body bruised, she's got me with
Nothing to win and
Nothing left to lose

And you give yourself away
And you give yourself away
And you give
And you give
And you give yourself away

With or without you
With or without you
I can't live
With or without you

U2

terça-feira, 25 de abril de 2006

Os Olhos eram Verdes




Os olhos (...) eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido, que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate.
São os mais raros e os mais fascinantes olhos que há.
(...) Tinha os olhos verdes; e o efeito desta rara feição naquela fisionomia, à primeira vista tão desconcertante - era em verdade pasmoso. Primeiro fascinava, alucinava; depois, fazia uma sensação inexplicável e indecisa, que doía e dava prazer ao mesmo tempo; por fim, pouco a pouco, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a intelegência e toda a vontade eram absorvidas.
(...) Olhos verdes!!... (...) Não se reflecte neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.
Nem o fogo e o fumo das paixões, como nos pretos.
Mas o viço prado, a frescura e animação do bosque, a flutuação e a transparência do mar...
Tudo está naqueles olhos verdes.
(...) No verde está a origem e o primeiro tipo de toda a beleza.

Almeida Garrett

Ainda Que Mal


Ainda que mal pergunte
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te diga;
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrad

domingo, 23 de abril de 2006

Saudade


Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Florbela Espanca
(pintado por Eduardo Naranjo)

sexta-feira, 21 de abril de 2006

Escrevo-te para Devolver Tudo o Que Não Deste


Escrevo-te do lugar onde nos encontrámos e separámos. A velha estação de comboio, à beira das árvores despidas pelo vento, ao cair da tarde, ao cair de Setembro. O comboio que te trouxe e levou. Escrevo-te daqui do lugar onde disseste: ficarei para sempre. E partiste. A marca da despedida na última página do teu diário. Do lugar onde estragámos a festa, espantámos a caça, atrapalhámos o trânsito. O lugar onde nos encontrámos e separámos: o Outono. Escrevo-te do lugar onde marcámos o nosso desencontro. Iamos de viagem e o comboio parou, durante dois anos, na estação mais sinistra do percurso. Ficámos ali sozinhos no centro do nada. Onde está o maquinista, os outros passageiros? Nenhuma esxplicação, ninguém a quem apresentar queixa. Encalhámos no Outono. Conhecemo-nos em Julho e já era Outono. Nunca saímos do Outono. Nao houve Primaveras nem Verões nos anos do nosso amor. Ficámos suspensos a ver as árvores despirem-se. Olhei-te, confundido: porque nos atiraste para aqui? Mas tu eras muito jovem e não ouvias. Estavas deslumbrada com a tua força. Paraste o mundo no Outono. Ergueste uma barreira e conseguiste deter o próprio movimento do planeta. Uma barreira de ardis, de perfídias e cobardias, acinte e frio e vazio, tu que gostavas de brincar com as palavras com muitos iis. Escrevo-te do lugar onde humilhámos o Universo. Para te devolver tudo. As carícias que esqueceste. As cartas que não escreveste. E as que nunca abriste. Escrevo-te para te devolver tudo o que não deste. E as horas de desespero, de olhos fechados em frente ao mar. A espera inexorável e mesquinha, junto ao telefone. Escrevo-te para devolver a marca de esperança louca, na última página de meu diário. Escrevo-te. Para devolver o Outono.

Paulo Moura